quarta-feira, 19 de março de 2025

 

BARRETO, Afonso Henrique de Lima. Os Bruzundangas. Porto Alegre: L&PM, 1998.


Lima Barreto (1881-1922) foi um importante escritor e jornalista brasileiro, conhecido por suas críticas sociais e por retratar a vida urbana e as desigualdades do Rio de Janeiro no início do século XX. Nascido em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, seu nome completo era Afonso Henriques de Lima Barreto. Filho de pais mestiços, enfrentou dificuldades financeiras durante a vida, mas teve o apoio de seu padrinho, Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, que contribuiu para sua formação escolar.


Além de romancista, Lima Barreto foi um prolífico cronista, colaborando com diversos jornais e revistas. Sua vida pessoal foi marcada por lutas contra o alcoolismo e problemas de saúde mental, que o levaram a internações psiquiátricas. Ele faleceu em 1º de novembro de 1922, no Rio de Janeiro, deixando um legado literário que só foi plenamente reconhecido após sua morte.


No contexto histórico em que viveu, o Brasil passava por profundas transformações: a virada do século XIX para o XX foi marcada pela abolição da escravidão, o fim da monarquia e a instauração da República, que trouxe grandes esperanças ao povo brasileiro. No entanto, o novo regime político manteve vícios e práticas nefastas herdadas do período colonial.


Com sua genialidade, Lima Barreto denunciou, por meio da sátira, a sociedade brasileira que emergia na época. Em “Os Bruzundangas”, ele cria um país fictício chamado “República dos Estados Unidos da Bruzundanga”, onde um viajante despretensioso descreve as principais características sociais desse lugar imaginado. Nessa sociedade, a economia estava sempre em crise, os políticos eram incompetentes, e predominavam o clientelismo, o nepotismo e os privilégios, características típicas do Brasil do início do século XX. O autor também critica a academia, sugerindo que, em Bruzundanga, os mais premiados eram justamente aqueles que menos sabiam.


No início do século XX, a sociedade brasileira enfrentava o coronelismo, prática comum em diversas regiões do país, na qual grandes latifundiários exerciam autoridade local, elegendo-se ou elegendo seus apadrinhados. O voto de cabresto é ironizado na obra, quando “os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos candidatos, conforme queriam”.


A economia da época era fortemente influenciada pelo café, que polarizava o país entre as duas potências regionais: São Paulo e Minas Gerais, na chamada “política do café com leite”. Lima Barreto não deixa de tecer analogias a esse respeito: “O café é tido como uma das maiores riquezas do país; entretanto, é uma de suas maiores pobrezas. Sabem por quê? Porque o café é o maior moedor das finanças da Bruzundanga”.


Com seu talento literário, Lima Barreto expõe críticas contundentes à sociedade de sua época, mas seu legado permite refletir sobre as mazelas sociais do Brasil atual. Em diferentes rincões do território nacional, muitas vezes esquecidos pela mídia hegemônica, ainda persistem práticas coronelistas e o mandonismo. Para finalizar, cabe questionar: as palavras do autor ainda refletem a realidade brasileira quando ele afirma: “A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece”?


Fábio Gomes,  

Professor de Geografia


segunda-feira, 3 de março de 2025

Resenha do livro: Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras


 SONORIDADES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS:
O imaginário na Música Popular Brasileira


(Por Fábio Gomes, professor de geografia)


Autores: José Machado Pais, Joaquim Pais de Brito, Mário Vieira de Carvalho. Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras: o imaginário na Música Popular Brasileira, páginas 382. Editora ICS, Lisboa - Portugal, ano 2004.


A Geografia Cultural é um ramo da Geografia que procura compreender os fenômenos espaciais a partir das práticas culturais de uma sociedade, ou seja, as suas crenças, comportamentos, valores e imaginários, que de modo geral, são explicitados em suas músicas, danças, religiões, modas, entre outros aspectos.


As práticas culturais de uma sociedade acabam por retratar a identidade de um povo, que passa a se diferenciar de outros povos localizados em outros lugares. Os fenômenos culturais, portanto, não podem ser desassociados de sua espacialidade. 


Por meio das práticas culturais, a sociedade define a sua configuração espacial, como a construção de igrejas, teatros, museus, arquitetura das moradias, ofertas de lazer, tipos de economia, entre outros fenômenos que se realizam no espaço social.


No presente texto, os autores procuram compreender o Brasil do início do século XX através da análise de letras de sambas, em que seus compositores, frutos de seu tempo, retratam bem o imaginário social da sociedade brasileira daquela época.


A modernização da economia brasileira no início do século XX trouxe transformações profundas na organização da vida urbana, do trabalho e das relações sociais. Portanto, os autores destacam letras que abordam temas como “trabalho, dinheiro e mulher”.


A abolição da escravidão não trouxe melhorias efetivas na vida dos negros e dos mais pobres. Tiveram que se recolher em cortiços e favelas, ficando à margem do glamour dos grandes eventos culturais, destinados à classe média e alta. Mesmo com a entrada no trabalho assalariado, os negros ficaram em desvantagem em relação aos homens brancos, tendo que se contentar com trabalhos precários e esporádicos.


Assim, no convívio cotidiano nas favelas, surgem as rodas de samba como alternativa de lazer, onde vizinhos e conhecidos se juntam para fazer música, dançar e se divertir.


As letras de samba exaltam o cotidiano do homem negro, morador da favela e que sobrevive com pouco ou nenhum dinheiro, como exemplificado nas músicas “Pelo Telefone”, de 1917, de autoria de Donga e Mauro de Almeida, ou “O que se será de mim?”, de 1931, composta por Ismael Silva.


Os sambas retratam a relutância do malandro em relação ao trabalho assalariado, que é visto como sacrifício, rotina e penoso. Preferem assim sobreviver de jogatinas ou pequenos golpes, como forma de subsistência, como explicitado na música “Acertei no Milhar”, de Wilson Batista.


Ao mesmo tempo em que há uma recusa ao trabalho, há uma constante preocupação com o dinheiro. O malandro, por ser pobre e favelado, nunca tem dinheiro suficiente, sendo essa uma preocupação cotidiana, como mostra o samba “Caixa Federal”, de 1933, composto por Orestes Barbosa.


As relações de gênero e familiares também são retratadas nas várias letras de samba. Enquanto que os homens entravam no mercado de trabalho, as mulheres ficavam bastante dependentes da “bondade masculina”, gerando atitudes diferentes por parte delas. Algumas se tornavam subservientes na esperança de serem mantidas adequadamente pelo seu marido. Outras, mais independentes, ousavam abandonar o marido que lhes faltasse com suas obrigações.


As letras mostram esses dois tipos de percepção sobre as mulheres. Por um lado, a mulher era vista como “rainha do lar”, que passava, cozinhava e acalentava o homem e, portanto, merecia sua homenagem através de letras, como a música “Ai que saudades de amélia”, de 1941, de autoria de Ataulfo Alves. Por outro lado, a mulher era vista como “interesseira”, que se aproveitava dos homens para conseguir o que queria, abandonando-os e deixando-os na solidão e na tristeza, como mostra a música “Oh Seu Oscar”, de 1939, também de autoria de Ataulfo Alves.


A partir do estudo do texto, podemos compreender como o imaginário social de uma época e de um lugar é traduzido através da música, por exemplo. As músicas, assim como o teatro, a poesia, a pintura, as danças, são retratos de como a sociedade se comporta e enxerga a realidade.


No início do século XX, a sociedade brasileira começou a se industrializar, passou por transformações que moldaram a forma de pensar do cidadão brasileiro. As mudanças no mundo do trabalho e das relações sociais ganharam novos significados, nos quais o homem assumiu um papel fundamental na manutenção do status quo, por meio da reprodução do trabalho assalariado e da família patriarcal.


Os sambistas, atentos ao cotidiano das classes populares, retrataram o que pensava e fazia o “malandro”, personagem que ganhou o imaginário popular como preguiçoso, esperto e mulherengo.


Para finalizar, ressalto a importância do texto para a compreensão dos fenômenos espaciais a partir das práticas culturais da sociedade, nas quais todos nós temos um papel fundamental, seja na reprodução de valores, seja na sua transformação.

  BARRETO, Afonso Henrique de Lima. Os Bruzundangas. Porto Alegre: L&PM, 1998. Lima Barreto (1881-1922) foi um importante escritor e jor...